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Designotopia: William Morris e os revivalismos celta e viking na Europa do século XIX

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Upplands_RuninskriftAs curvas normalmente associadas às antigas artes celta e viking sempre tiveram para mim forte apelo estético. Recentemente, minha estadia no Reino Unido, possibilitada por uma bolsa de doutorado sanduíche do CNPq, me fez pensar mais detidamente sobre a influência de tais curvas em designs dos últimos séculos, e no movimento mais geral de resgate da lingua, mitos e cultura desses povos.

Esses resgates ou revivalismos são eventos importantes na Europa do século XIX e servem a diversos fins: politicamente, aparecem como narrativas congregadoras, e ajudam a consolidar os Estados nacionais em formação; psicologicamente, oferecem formas de espiritualidades alternativas em um momento no qual o cristianismo perde força; artisticamente, oferecem um mais do que fértil acervo-base para novas propostas estéticas. Algumas vezes, todos esses fins podem aparecer interligados em uma espécie de grandiosidade político-estético-espiritual, que tendemos a associar, no caso alemão, ao wagnerianismo.

Edward A. Hornel e George Henry. Druidas trazendo o visco. 1890.

Edward A. Hornel e George Henry.
Druidas trazendo o visco. 1890.

Se tendemos, enfim, a associar o racionalismo moderno a um revivalismo clássico (greco-romano) — que seria, então, uma das bases para o progressismo tecnocientífico subsequente –, parece razoável associar, ao menos em parte, o Romantismo do século XIX ao revivalismo “bárbaro”. O revivalismo viking tem grande importância em países como Alemanha, Noruega e Islândia. Já na Irlanda e na Escócia floresce o “renascimento” celta, incluindo um revivalismo de línguas celtas, como o gaélico, atualmente uma das línguas oficiais da Irlanda. Afirmando a identidade celta, Irlanda, Escócia e País de Gales podem se enxergar como centros de resistência às invasões anglo-saxã e viking que deram origem à Inglaterra. Na Inglaterra, por outro lado, tanto o revivalismo celta quanto o viking possuem certo apelo.

É claro que, em cada país, há várias figuras que promoveram de diferentes maneiras  os revivalismos em questão. O nome de um inglês, porém, talvez mereça destaque quando se trata de pensar, de uma forma bem diferente da wagneriana, a conexão entre esses três vertentes do revivalismo que apontei acima: a política, a estética e a psicológica/espiritual. Refiro-me a William Morris, nome conhecido por qualquer designer que se interesse um mínimo pela história de sua profissão, mas ao qual nem sempre se dá a devida atenção.

William Morris. Acanthus. Padrão para papel de parede.

William Morris. Acanthus.
Padrão para papel de parede.

No que diz respeito à história do design, Morris é conhecido por ser um dos promotores do movimento Arts and crafts, e também por suas belíssimas padronagens têxteis e projetos de móveis. O mais interessante em Morris, porém, é a assustadora abrangência de suas habilidades: além de ser um designer eclético, atuando tanto na parte gráfica quanto de design de produto, Morris se dedicava à literatura, de maneira ainda mais eclética: era poeta, novelista, estudioso e tradutor de literatura antiga e medieval, tendo traduzido diversos textos do islandês antigo (de mitologia viking) e de outras línguas.

Amante da mitologia viking, Morris chegou a passar dois meses na Islândia em 1871, ocasião na qual produziu um interessante caderno de viagens. Alguns anos depois, ele escreveu um poema intitulado A história de Sigurd o Volsungo e a queda dos Nibelungos, inspirado, é claro, pela mais famosa lenda da mitologia islandesa, A saga dos volsungos (que, há alguns anos, foi publicada em português pela Hedra). Nos anos subsequentes, Morris produziu diversas obras literárias influenciadas pela mitologia viking, aparecendo como um dos consolidadores do gênero literário que costumamos chamar de “fantasia”. Como constata Richard Mathews em seu livro Fantasy: the liberation of imagination (p. 16): “William Morris e George MacDonald são os pioneiros da fantasia como um gênero literário moderno”. Muitos enxergam Morris como uma das principais influências de Tolkien — provavelmente o autor mais conhecido do gênero –, às vezes sublinhando, além de semelhanças formais e temáticas, coincidências de nomes, como Shadowfax (muito parecido com  Silverfax, nome de um cavalo em Um poço no fim do mundo), Mirkwood etc.

Socialist-League-Manifesto-1885Sem nos alongarmos demais nessas questões, passemos para outra área na qual Morris exerceu influência – se não influencia tão importante, ao menos bastante curiosa: a política. Inicialmente ligado ao liberalismo inglês, Morris passou mais para o fim da vida a defender a causa comunista (que seria para ele a fase final do socialismo), tendo participado do primeiro partido socialista britânico, a federação democrática (como de costume, o nome do partido confunde mais do que explica sua posição). Anos depois, ele se afasta de tal partido e se torna um dos fundadores da liga socialista. Nessa posição, ele ajuda a escrever e realiza a  arte para o manifesto da liga (ao lado).

Em sua fase “engajada”, Morris escreve um romance utópico, Notícias de lugar nenhum (NLN), no qual expõe alguns de seus ideais sociais. Logo na abertura, a descrição de uma viagem de trem como o “banho de vapor de uma humanidade apressada e descontente” explicita a extrema desconfiança de Morris com a técnica e a civilização, e ficamos esperando uma espécie de utopia de retorno à natureza de inclinação rousseauniana, como as descritas em meu post Retorno à natureza: um novo ideal?. Algumas vezes, Morris de fato pende para este lado, como em uma cena na qual o protagonista passa por uma floresta com seu “guia” na nova sociedade e fica sabendo que no verão crianças e adultos muitas vezes vão morar nas florestas, acampando. De resto, ele declara explicitamente sua aversão à civilização em seu texto Como me tornei um socialista (CTS): “Sem contar o desejo de produzir coisas belas, a principal paixão da minha vida foi e é o ódio à civilização moderna”.

Kelmscott_Manor_News_from_NowherePorém, há uma diferença crucial entre Rousseau e Morris: o primeiro vê a arte como uma faceta do processo civilizatório e a ataca, em seu Discurso sobre a ciência e as artes, como fonte de corrupção. Em suma, toda a tentativa de desenvolver-se para além de um estado primitivo de conexão com a Mãe Natureza aparece, para Rousseau, como essencialmente problemática. Para Morris, ao contrário, um dos grandes problemas da civilização é justamente que ela se afastou da busca estética — a civilização aparece para ele como “uma vulgaridade cega que destruiu a arte” (CTS). A busca estética aparece assim como uma ambição propriamente humana, muita diversa da ambição típica da civilização moderna, centrada na lógica da eficácia econômica e na multiplicação insana de coisas feias e descartáveis. Em Notícias de lugar nenhum, por exemplo, o protagonista entra em um dado momento em uma “loja” da sociedade utópica. Escrevo “loja” entre aspas porque trata-se na verdade de um centro de doação de certas mercadorias, já que na sociedade utópica de Morris não existe dinheiro: o visitante entra e pede um pouco de tabaco de um certo tipo. Não apenas recebe o melhor tabaco que já experimentou como, quando solicita um cachimbo, a “vendedora” vai ao depósito e volta com um “cachimbo de boca larga em sua mão, talhado a partir de alguma madeira bastante dura, muito elaborado e montado em ouro adornado com pequenas pérolas. O cachimbo era, em resumo, um dos itens mais bonitos e alegres que [o protagonista] já havia visto; algo como o melhor tipo de trabalho japonês, mas ainda melhor” (NLN).  O cachimbo, claro, é apenas um exemplo. Ao longo de toda a sua visita, o hóspede, como o chamam, observa a beleza da arquitetura, da moda e dos objetos, acessíveis a todos os felizes cidadãos de lugar nenhum.

james-ball-stained-glassArt Nouveau Viking Throne by Lars Kinsarvik3Começamos a perceber, com tal utopia, algumas das ligações entre arte, política e “espiritualidade” (a possibilidade de cultivo do indivíduo) para Morris. O caminho de retorno às empreitadas esplendorosas que é possível vislumbrar nas mitologias celta e viking e em mitos medievais seria, para Morris, o caminho do design. Nesse contexto, é possível apreciar melhor a estética que pode ser associada com o Arts and crafts e certas vertentes da Art nouveau. Na parte gráfica, a retomada dos temas dos mitos celtas e vikings é evidente, como é possível ver no quadro de Hornel e Henry reproduzido no início do post, nos desenhos de Morris e Beardsley (autor da ilustração abaixo), e nos vitrais de James Ballantine (exemplo acima). No que diz respeito aos móveis, o revivalismo viking é provavelmente mais profícuo: diversas peças belíssimas retomando as curvas vikings foram produzidas no final do século XIX, como a cadeira de Lars Kinsarvik que aparece na figura acima. Esse estilo revivalista ganhou até um nome, ficando conhecido como “estilo dragão” (Dragestil) — imagino que por conta dos dragões dos mitos vikings.

Oaubrey_beardsley5s revivalismos celta e viking do final do século XIX são, enfim, um ponto-chave para a compreensão da história do design. Acredito que atentar para as ligações entre design, política e espiritualidade em tal momento pode nos ajudar a pensar de maneira mais interessante os movimentos atuais no design de retorno à natureza, sustentabilidade e atuação sociopolítica. Refletindo sobre as propostas de Morris, talvez seja possível pensar que, por mais importantes que sejam, sustentabilidade e atuação sociopolítica (o tal design para um mundo “real”) só fazem sentido quando guiadas por uma busca estética em seu sentido mais amplo, isto é, uma busca imaginária, simbólica, sensível ou espiritual. Em suma, para se assumir uma postura projetual relevante, é preciso ter sempre em mente que o real só existe na relação com suas máscaras — e, algumas vezes, como vimos, máscaras celtas ou vikings…


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